Criar uma Loja Virtual Grátis
Contos Diversos

 

Pedras Preciosas

 

Era uma espécie de biscateiro. Fazia consertos de vários tipos: elétricos, hidráulicos, construção civil... um "fac-totum". Foi lá em casa reparar a descarga do banheiro, que estava vazando.

Depois de mexer à vontade, molhar o banheiro todo e enlamear o chão com as botas sujas, veio até a sala e mostrou, triunfante, um pequeno objeto, na ponta dos dedos:

― Não falei para o senhor? Era o "courinho"!

― Já resolveu o problema? ― perguntei.

― Ora, o senhor achou que eu não ia resolver, né? Tenho muita experiência nessas coisas! São muitos anos fazendo de tudo um pouco. O senhor não ia acreditar se eu lhe contasse tudo que já fiz!

Como, provavelmente, eu não acreditaria mesmo, concordei com a cabeça e pedi para aguardar enquanto ia pegar o talão de cheques. Ficou na sala, olhando tudo com olhinhos perspicazes e rápidos. Quando voltei, disse referindo-se a dois cristais que eu tinha na estante, uma ametista e um topázio, daqueles em forma de geôdo, uma pedra cortada, tão comumente vendida nas estradas de Minas, principalmente perto de Teófilo Otoni. Tinham sido presente de meu irmão, que estivera por aquelas bandas.

― Pedras bonitas essas!... O senhor sabia que isso é muito antigo?

― Sem dúvida! ― concordei.

― Pois é. Já vi que o senhor entende mesmo. Tenho um tio que tinha uma dessas na casa dele. Foi o avô dele que trouxe de longe...Lá de Minas!

― Essas também vieram de lá,-- comentei.

― Pois é! O senhor não ia acreditar, mas essa pedra já tem mais de cem anos!...

― Cem anos!... -- Exclamei pasmo, pensando nos milhões, bilhões de anos que a natureza levara para formar aqueles cristais!

― Não disse que o senhor não ia acreditar? É difícil mesmo, mas é verdade: tem mais de cem anos!

― Quanto é o conserto? ― perguntei para encurtar a conversa.

― Cem reais! -- disse ele, como se cem fosse a síntese de  todo o número que ele conhecesse.

 

 

Reunião do condomínio

 

― Amanhã tem reunião do condomínio! Você vai! ― decidiu a mulher com firmeza, enquanto ele tirava os sapatos, recém chegado do trabalho.

― Reunião do condomínio? Isso deve ser muito chato!

― É, mas você vai. Aliás, a vizinhança comenta que as reuniões daqui são muito movimentadas. Aquele menino do 4º andar, o Zico, diz que não perde uma! Diz ele que é melhor do que a ‘Tela Quente’.

Moradores novos no prédio, Carlos e a família haviam mudado há apenas um mês para o novo apartamento que ele, com todo orgulho, comprara pela Caixa:

― Fruto de vinte anos de trabalho! Levou todo o FGTS, mas valeu a pena! ― comentava cheio de si, para os amigos da rodinha de chope do fim de semana.

Agora chegava a hora do primeiro teste de proprietário: A reunião do condomínio.

No dia seguinte, as oito em ponto, Carlos entrou no salão de festas do "playground" já preparado com cadeiras de plástico esperando os participantes da reunião. O síndico, um senhor de meia idade, baixinho, calvo e empertigado chamado Coelho, ocupava a cadeira central, cônscio da sua hierárquica posição perante os demais. A secretária do síndico, uma velha solteirona e rabugenta do quinto andar, D. Jandira, que os meninos apelidaram de "Cara de Coruja", fazia anotações com uma caneta numa folha de papel:

― Faz favor de assinar a lista de presença, gritava com voz de araponga.

Dali a pouco começou a reunião. O assunto principal era a impermeabilização da laje do terraço, fato exigido pelo português do último andar, o Carneiro, que nunca estava de acordo com nada.

―Tem que impermeabilizaire porque a iágua está a entraire pelo teto. Pinga a iágua das lâmpadas, iapá!

D. Ermelinda, que morava no sétimo, foi contra:

― Acho que esta obra não é prioritária. Temos que trocar as pastilhas da fachada para o Natal.

―  Natal uma ova, ― explodiu o Carneiro―, eu quero é que tratem de fazer logo o que tem de ser feito no terraço, em vez de ficaire a escutar esta velha, criadora de gatos, e desferiu um tremendo murro na pasta que segurava no colo.

D. Carmelita, que morava embaixo do Carneiro, veio em defesa da amiga, D. Ermelinda.

― Criar gatos incomoda menos do que infiltração do banheiro do andar de cima. O senhor Carneiro devia consertar seu banheiro antes de pedir para impermeabilizar a laje.

Aí o Carneiro ficou vermelho como um pimentão e partiu para a ignorância, aliás, uma característica trazmontana muito apreciada.

-- Ó dona, meta-se com sua vida! Antes de falar dos outros devia tomar conta de sua filha que anda se insinuando p'ra cima do meu Manoelito.

― Minha filha, não senhor! Ela tem educação e não anda se arrastando para o lado de filho de ladrão!

― Ora, pois! –  quem é ladrão, sua linguaruda?

― O senhor, que anda roubando no peso lá naquela mercearia fajuta, que só vende produto caro e falsificado!

A esta altura os ânimos estavam exaltados e todo mundo estava esquentado. O Dinho, a bichona do sexto andar, falou "toda afetada":

― Ih, seu Carneiro! O senhor é grosso...

― Grosso és tu, ó paneleiro de uma figa, que ficas a encher o prédio de homens...

― Estúpido!

― Viado!

― Nojento!

― Fofoqueira!

― Português rude! Ai, ai...

Anda aí, ó... Que te dou uma...

―  Chama a polícia!

― Crash...

D. Carmelita recebeu o vaso de flores que enfeitava a mesa diretamente na cabeça, ofertado pelo Carneiro. Começou a sair sangue do corte. O Coelho com a gravata despencada gritava correndo de um lado para o outro:

― Senhoras... Senhores... Tenham calma, por favor... Vamos conversar, data vênia, data vênia...

― Conversar nada! Esse português filho da p... matou a minha amiga, gritava a D. Ermelinda.

A "Cara de Coruja" esganiçava a voz, batendo na mesa com o sapato:

― Vândalos... Eu bem que avisei! Reunião de gentinha dá nisso!

― Gentinha é sua mãe, ― rebateu o Peixoto, motorista de táxi do primeiro andar, que ouviu a "Cara de Coruja".

O casal de esotéricos do apartamento junto ao Carneiro, tentava conter os ânimos

― Calma, o ódio cria carma negativo... Olha as vibrações magnéticas... oooooommmmm, ooooommmmm...

Quando a polícia chegou foram todos para o distrito, menos Dona Carmelita, que foi para o hospital tomar cinco pontos na testa.

Tarde da noite, Carlos voltou para casa. A mulher ainda estava acordada esperando:

― Como foi a reunião?

― Nossa!!! Aquele menino, o Zico, tem toda a razão: Não dá para perder uma reunião como esta!!!

 

 

Vexame

 

Antônio Jorge, singular produto da família Pereira de Araújo Abreu e Silva, sergipana de sete costados e sua mulher, Carminha, estavam vindo de Aracajú, sua terra natal, para Salvador, de ônibus. Haviam ido visitar a família, já que ele, de emprego novo no Pólo Petroquímico, fixara residência no agradável bairro da Pituba, um dos melhores da capital baiana.

Esperando o ônibus na rodoviária, nosso herói, entediado e faminto, virou-se para a esposa e disse:

― Tô morrendo de fome! Vô ali na lanchonete comer um pastel!

Assim disse e assim fez. Comeu, não um, mas dois, já que o "bicho tava danado de bom "; e caprichou na pimenta, pois nordestino é cabra macho que não recusa uma malagueta das boas.

No horário marcado, o ônibus partiu, e lá se foi, alegre e satisfeito, o feliz casal, rumo à sua residência na Boa Terra.

Ao passar por Esplanada, uma ligeira parada na rodoviária local! Antônio ouviu um fraco barulho como um borbulhar de água. Apurando mais a atenção percebeu que o mesmo vinha de sua barriga! Mas, como já estavam perto de Salvador, deixou para lá e voltou para o ônibus.

Na chegada à capital baiana, enquanto aguardavam na fila do táxi, veio uma dorzinha fina. Antônio ainda pensou em ir ao banheiro, mas... como já estava chegando a sua vez resolveu agüentar, pois, afinal, a Pituba fica bem pertinho da rodoviária. E lá se foram os dois, numa noite que, com toda a certeza, deveria ser inesquecível.

Quando o táxi fez a curva para pegar a pista contrária que passa em frente ao Iguatemi, os pastéis acordaram de seu longo sono. A "dor de facão" chegou e atravessou o ventre de Antônio com a profundidade e violência de um ataque às torres gêmeas. E foi mesmo um gemido o que Antônio deixou escapar pela greta dos lábios apertados. Carminha ainda olhou para o marido, mas na penumbra do carro, achou que era, apenas, "cansaço da viagem". Não ligou.

Antônio, num silencio pungente, nas vascas da agonia, cravava os dedos nas palmas da mão, enquanto um suor frio, gelado, escorria pela sua fronte e empapava a camisa; os lábios brancos serviam de apoio aos dentes que se cravavam nele até, quase, verter sangue. Os olhos, fixos num ponto qualquer do infinito, olhavam duros para frente, sem ver, apenas percebendo sombras furtivas ao seu redor. Já na altura do Hospital Aliança, seu esforço para manter a dignidade, foi se dissolvendo e um líquido semiviscoso amarelado e ralo, empastava toda sua roupa, atravessava para o assento e escorria pelas pernas, quente e doloroso, dor esta que se mudara da barriga para a alma de Antônio. Duas lágrimas furtivas rolaram pelas faces dele, não se sabe, até hoje, se de alívio ou de vergonha.

A esta altura, tanto o motorista quanto Carminha já demonstravam desconforto, mas sem desconfiar do sucedido, cada qual dava sua desculpa pondo a culpa na cidade e seu prefeito que permitia bichos mortos pelas ruas. Depois tinha um canal na avenida e foi, sem dúvida, este canal que recebeu a culpa do "odor pungente" e impediu um vexame precoce. Abertas que foram as janelas para que o vento da noite entrasse aos borbotões, seguiram em frente, chegando afinal à rua Manoel Dias, onde morava nosso heróico casal.

Quando o táxi parou, Antonio, sem demora, desceu correndo e sem olhar para traz, atravessou a portaria e mergulhou no elevador, deixando Carminha pagar o táxi.

Ela já ia pelo meio do saguão, quando o motorista, vermelho e possesso, correu atrás dela gesticulando e falando com voz entrecortada:

― Minha senhora, seu marido é um porco! Borrou meu táxi todinho! Se ele tivesse dito que queria fazer o que fez eu teria parado o carro! Mas não! Ele tinha de fazer aquilo justamente dentro do carro! Como é que eu vou trabalhar agora? Não quero nem saber! A senhora vai limpar!...

E babando como um louco continuava a esbravejar com Carminha, que cheia de vergonha, vermelha e calada, apenas olhava para os lados para ver se algum vizinho estava presenciando a cena.

A moça, com as faces queimando pelo terrível vexame pelo qual passava, não teve outro remédio senão subir, pegar um balde com desinfetante, uma vassoura e outros apetrechos de limpeza, inclusive perfume, e limpar o táxi, sob os olhares severos e nada amistosos do motorista. E ainda teve que escutar as gracinhas dele, que, sarcástico, comentou:

-- Tenho pena da senhora! Também, com um marido desses!...  Eu se fosse a senhora, largava dele e me arrumava com um motorista de táxi. Se quiser a proposta está de pé...

Carminha não teve nem coragem de dar uma banana para o sujeito. Apenas conseguiu mostrar a língua, virou as costas e foi embora.

Hoje, se você quiser ganhar um inimigo de graça, convide o Antônio para jantar em sua casa e sirva, em uma bandeja, dois pastéis e um rolo de papel higiênico.

 

Vaidades... Tolices...

 

 "Há mais coisas entre o Céu e a Terra, do que supõe nossa vã filosofia", dizia o prefeito de Vila Sadia,  Narnulino Sócrates,  carinhosamente chamado pela população de seu Lili, com o dedo em riste e profunda voz de conhecedor da natureza humana. E virando-se para seu assessor Odnan,  perguntava em voz baixa:

― Sabe quem disse isso? Foi um árabe... O sheik... Não me lembro do nome completo dele!... Qualquer coisa assim como espirro... Sei lá!

Odnan concordava com o chefe, rezando para que a alma de Shakespeare, não se elevasse das profundas, encolerizada com o sacrilégio.

Seu Lili chamava Odnan de "filósofo e poeta", pois para ele a maior perda de tempo do ser humano, era preocupar-se com problemas de natureza transcendental ou filosófica ou, pior ainda, despejar sentimentos em rimas ou versos livres. Isso só servia para fazer figura com frases prontas, sua especialidade!  Mantinha porém o assessor ao seu lado pela vaidade de ter alguém no  "staff", a quem a cidade, considerava um intelectual. Nas rodas de amigos, entretanto, descascava o verbo contra o pobre Odnan, dizendo que todo filósofo era vagabundo e todo poeta um alucinado com uma visão vesga de um mundo irreal, que, positivamente, não existia.

― Teve um poeta idiota que disse que ouvia as estrelas! Coitado! Deve ser um alucinado... Igualzinho ao Odnan... Onde já se viu!... ouvir estrelas!... Dizia entre gargalhados e copiosos goles de Ballantines 12 anos.

Entretanto, como o segundo nome de seu Lili era Sócrates, exaltava o filósofo grego só para ressaltar sua sabedoria.

― Esse tal de Sócrates, lá das Oropas, é muito parecido comigo... Se bem que eu tenha uma vivência maior do que a dele, pois já é a terceira vez que eu sou prefeito...  Depois ele tem um negócio de dizer que só sabe que não sabe... Isso é besteira. Ou a pessoa sabe ou não sabe. Por exemplo, eu sei e digo que sei! Pronto, não precisa ficar cheio de nove horas!

Odnan, que, também, era jornalista, um dia escreveu um artigo no Clarim de Vila Sadia dizendo que  o Presidente da Câmara era um  "Paredro". Seu Lili chamou o assessor:

― Ô Odnam, não fica bem chamar o vereador Erundino desse negócio que você pôs no jornal. O "home" é do nosso lado, sô!

-- O que? Paredro? Perguntou Odnan admirado.

― É! Isso é um palavrão que não se chama cabra macho! Você tá se arriscando! Vê se escreve outro artigo elogiando ele, p’ra tirar a má impressão!...

No outro artigo, Odnan disse que o Erundino era uma Azêmola ricamente ajaezada com ouropeis e presidente de uma récua de muares de alta linhagem. Fez sucesso! Seu Lili aplaudiu o artigo entusiasmado e o Erundino pediu que o mesmo fosse lido em plenário e registrado em ata, ficando gravado nos anais da Câmara, "para a posteridade".

Um dia, seu Lili precisou ir à capital resolver "problemas administrativos". Levou toda a corte: Vereadores da situação, secretários, assessores e aderentes (os correligionários mais chegados). Entre esses últimos estava o doutor Vila-Lobos Pedreira, advogado ladino, descendente direto do engenho, pernambucano, legítimo, produto da cana de açúcar com ares de baronete do Segundo Império, ou seja, muita empáfia e pouco conteúdo. Acostumado a ter tudo a seus pés, posava de patrão de todos, inclusive do prefeito, que lhe retribuía os sarcasmos com um sorriso pela frente e uma banana pelas costas.  O outro, em compensação, paquerava a mulher do prefeito, nas barbas do próprio.

Por ser bacharel, conforme ele próprio gostava de se intitular, tinha umas tinturas de intelectual adquirida em livros, almanaques e folhetins do século passado. Fã confesso de Eça de Queiroz vivia comparando aos personagens do autor português, principalmente ao Conselheiro Acácio, ― seu personagem predileto ―, as pessoas que lhe cercavam. Odnan era o seu interlocutor favorito! Não se sabe por que capricho gostava da companhia do assessor de seu Lili e, freqüentemente, o convidava para sua casa, onde entre copos e mais copos de uísque, falava de filosofia,  terminando, geralmente, com um completo porre filosófico! Porre, aliás, era a ocupação preferida de seu Lili que não podia ver uma garrafa cheia e, quando se juntavam os dois, todos os outros faziam apostas em voz baixa para ver quem caia primeiro.

Nesse dia o séqüito do prefeito foi almoçar num dos restaurantes mais chiques da capital "por conta da prefeitura". Lá chegando, a farra correu frouxa entre os "comes & bebes", variados pratos, entradas finíssimas, petiscos para "tira-gosto", uísque, cerveja, vinho, pratos típicos e internacionais... Um rega-bofe de primeiríssima, pois que uma ida à capital, requeria um banquete em alto estilo.

Lá pelas tantas, seu Lili, já no topo da montanha, ou seja, bastante alto, chamou o assessor, que estava no outro extremo da mesa, na qual ele se encontrava em tertúlias com o advogado pedante:

― Ô Odnan, o doutor Vila-Lobos, aqui, está dizendo que eu sou muito vaidoso. Diga p’ra ele que eu não sou vaidoso, o vaidoso é ele.

Enquanto isso o doutor Vila-Lobos, com um dedo em riste, na altura dos olhos, escarrapachado na cadeira e vermelho, como um dos camarões que conseguira escapar ileso e ficara abandonado no prato, com olhos de "Capitu", oblíquos e dissimulados devido ao alto número de  uísques ingeridos, dizia com voz pastosa:

― Vaidoso, sim! Vaiii...ddoooso!...

Odnan, vendo que a conversa estava no ponto em que devia "começar a terminar", tentou pôr panos quentes:

-- Bem, todos nós somos vaidosos... Eu mesmo...

--Não me venha com sofismas! Disse seu Lili com voz de trovão. Todos, não senhor! Você pode ser, mas eu não!

-- Mas vaidade nenhuma, prefeito? Nem a vaidade de não ter vaidade? ― perguntou Odnan timidamente.

-- Absolutamente nenhuma! Respondeu Lili enfaticamente. Alias, dentre todas as qualidades que eu tenho ― e olhe que não são poucas ―, a maior delas é esta minha imensa modéstia com a qual Deus, para fazer inveja aos outros homens, me dotou!

... Abaixemos o pano sobre a cena e esqueçamos o resto...

 

Vila Sadia

 

Chega o século XXI repleto de conquistas tecnológicas e fatos estarrecedores!

O computador, cada vez mais sofisticado e recheado de Internet e outras redes, leva o conhecimento a domicílio, ao varejo, banalizando os meios de comunicação repletos de e-mails e outros apetrechos que visam globalizar o pobre planeta azul, alvo de tantas agressões que seus habitantes teimam em praticar!

Caem aviões sobre as torres gêmeas, afundando o mundo em horror e medo, semeando o pânico, antecipando o fim do mundo para milhares de seres humanos que se arrastam pela vidinha tediosa, com medo do fantasma do antraz e outras misérias!

Chovem bombas sobre o Afeganistão, numa caçada jamais vista contra o saudita Bin-Laden, onde morrem civis e se destrói um país – se é que se pode destruir o que já está destruído – atrás de um homem e meia dúzia de seus seguidores!

A seleção brasileira sofre nas vascas da agonia, para tentar uma classificação que a leve à Copa do Mundo, e perde para os times  mais fracos da competição, virando saco de pancada dos pequenos e transformando uma partida com a frágil Venezuela numa questão nacional, com manifestação popular maior do que as manifestações políticas que reivindicam melhorias para o povo! Em tempo: Esta mesma seleção foi "penta".

Fala-se em clonagem de seres humanos, e uma emissora lança uma novela idiota, que espreme as lágrimas do povão grudado na telinha, sem feijão ou emprego, mas com arroubos sentimentalóides, para ver bons atores fazendo ridículos papeis!

Muda o mundo, enfim, numa constante corrida, um carrossel de fatos, uma roda gigante de acontecimentos, trazendo alegria e tristeza, amor e dor, gratidão e ódio, esperança e agonia, lágrimas e risos... Todos participam desta gigantesca aldeia global, sofrendo as nuances, as metamorfoses da humanidade moderna!

Quase todos! Vila Sadia, não se abala!

Ganhe ou perca o Guga! Receba o presidente aplausos em Paris! Lula dispare nas pesquisas de opinião! Suba o dolar às alturas ou desça às profundas! Vá o Flamego para a segunda divisão ou salve-se à última hora! Nada disso abala Vila Sadia! Ali o tempo passa com preguiça, parado nas esquinas vazias dos fins de semana mortos.

Ali, o inteligente e o bronco se fundem na conversa boba do "no sense" coletivo.

E onde fica esta tal de Vila Sadia?  Longe? Perto? É grande? É pequena?

Que cidade é esta, que não consta nos mapas de nenhum estado?

Ela fica alí, na curva de nossas lembranças, no vale das nossas angústias, nos erros de antanho, num passado qualquer, mas também nas alegrias de nossa juventude e bem perto do coração.

E Vila Sadia tem prefeito?

Tem sim! Narnulino Sócrates, prefeito a vários mandatos, pois lá tem reeleição e re-reeleição. É a única cidade no mundo a ter uma constituição própria, independente da Constituição Federal. Aliás, ela é como Mônaco: cidade, estado e país ao mesmo tempo. E, quem sabe se não tem um príncipe ou um rei? Pelo menos já houve caso de transmissão hereditária do poder, quando Narnulino colocou sua mulher ( na época dizia que era noiva) na prefeitura. Lá, acontecem todas as coisas que gostaríamos que não acontecessem, e  aquelas que queremos, não acontecem! Só ramente se dá esse fato insólito!

Lá,os políticos não cumprem suas promessas, o prefeito não mora na cidade, os vereadores assinam com o polegar, a oposição é minúscula, o juiz eleitoral (que é o mesmo criminal e civil), cria oportunidades para a situação ganhar sempre, mudando derrotas em vitórias!

Em Vila Sadia, o dinheiro público serve para comprar barcos, apartamentos, fazendas, mansões, automóveis importados ou financiar campanhas para o deputado local! Só uma pequena parte se destina a obras, geralmente eleitoreiras ou que beneficiam empreiteiras familiares!

Como se percebe, não se parece com nenhuma outra cidade!...

Mas, nem tudo é ruim!... Em Vila Sadia, todos são irmãos! pelo menos de sangue!...  pois as muriçocas, à noite, se encarregam da transfusão, misturando o sangue dos cidadãos! E se não estão irmanados na saúde, pelo menos na doença todos se  equivalem entre dengues, malárias ou leichmanioses!

O prefeito, para construir um hospital na cidade, botou abaixo o que já existia! A explicação dada foi ótima: "Pr'á obra ser prioridade é preciso que não exista nenhum hospital aqui. Portanto... derruba o antigo!"

Na praça dos três poderes, o máximo que se conseguiu, depois de anos de obras, foram dois poderes, mesmo assim, bastante capengas e estropiados!

No largo do rio Ensaboaí, um dos símbolos de Vila Sadia, o rio secou! Só existe quando chove! Hoje em dia está sendo usado como maternidade de muriçocas...

― Estamos preservando uma espécie que um dia poderá estar em extinção... avisa o prefeito com ares de ecologista.

Enquanto isso, na Câmara Municipal (um dos poderes da praça), os valorosos edis, criam um projeto para construir o metrô de Vila Sadia ( que tem menos de cinquenta mil habitantes), outro para dispor do "lixo atômico" da cidade, outro, ainda, visa traçar uma perpendicular inclinada para a pobreza e muitas  outras pérolas semelhantes.

Em uma das sessões, o vereador Gerôncio, com ar de conhecedor do carater humano falou solenemente: ..."Tenho a dizer a vossas excelências que, honestidade é o ato ou efeito moral do indivíduo que não teve a oportunidade de ser desonesto"... Foi aplaudido de pé  pela "torcida" do prefeito por cinco minutos.

Certa feita, Odnan, o jornalista, escreveu, em um artigo: "...os vereadores  estão com o prefeito, salvo uma ou duas defecções..."  O artigo causou polêmica! O vereador Dejair, o mesmo da perpendicular inclinada, ocupou a tribuna e disse:

― Peço ao primeiro secretário que leia o artigo publicado no pasquim imundo escrito por um jornalista vil. E estendendo o jornal ficou aguardando a leitura.

O secretário foi lendo aos trambulhões, gaguejando e assassinando a pontuação e a pronúncia. Quando chegou a parte das "uma ou duas defecções", Dejair gritou com voz de trovão:

― Pare, senhor secretário! ― e virando-se para a Câmara perplexa: -- Viram? Perceberam a imundície?

Todos se entreolharam com cara de quem não entendeu patavina. Afinal o secretário, timidamente, falou:

― Não entendemos, vereador. Explique melhor.

― Defecções, excelências! Ele escreveu que a Douta e Egrégia Câmara tem defecções! DE-FEC-ÇÔES, ouviram?

A esta altura, o presidente da  Câmara, muito preocupado, pede recesso por cinco minutos e, em bloco, vão todos consultar o Aurélio. Quarenta minutos depois volta o secretário diz, compenetrado e com ar de entendedor:

― O Aurélio, vereador,  diz que a palavra significa deserções!!!

Um ‘ahhh!’ sonoro correu a assembleia.

Dejair, que havia confundido defecção com defecação, meio sem graça, pondera:

-- Pode ser! Mas eu ainda acho que é imundicie!

Em outra  ocasião, numa sessão tumultuada, a vereadora Lindinalva pede a palavra e e, em alto e bom som, dispara:

― Companheiros, precisamos acabar com o "susto" de muriçocas que assola a cidade...

Golias Cardoso, um comerciante que pleiteava uma cadeira na Câmara, em um comício público, aconselha a população:

― Meu povo, é preciso, urgentemente, "implantar a corrupção" em Vila Sadia...

E em outra oportunidade:

-- A Prefeitura não dá muita coisa para os estudantes, por isso precisamos de mais material "dático", que é p'rá todo mundo ficar satisfeito.

E o pastor de uma determinada igreja que possuia programa  num serviço de alto falantes, protagoniza esta linda passagem:

― Meus irmãos, não compareçam ao terreiro de Mãe Rosália, pois tudo lá é muito ruim. Vejam, irmãos, se macumba fosse bom, o nome não seria macumba, seria "bomcumba"... Portanto não frequentem a "má cumba".

E, no final, o locutor ainda completava:

-- "Encontro com Deus", um programa patrocinado pela Prefeitura Municipal e oferecido pela Casa da "Curtura"... Eu falei "CUR-TU-RA"...

 

Vila Sadia é assim mesmo. Qualquer semelhança é mera coincidência.

 

Quosque tandem, Catilina?...

 

Um dia, alguém, não me recordo quem,  falou-me, com a autoridade infalível de um Schopenhauer, de dedo na altura do nariz e voz de grande conhecedor da humanidade: "Os políticos são todos iguais". Frase, aliás, inédita, nunca antes proferida! Entretanto, como dizia o Barão de Itararé, "de onde menos se espera é que não sai nada mesmo",  apossei-me,  desavergonhadamente, da frase daquele amigo, concluindo minha primeira lição política: "  Nada é vergonhoso! Portanto se apossar do que é dos outros, é apenas locupletar uma parte de si mesmo (pensamento do grande filósofo político, Justo Veríssimo).

Pensando e matutando sobre a profundidade do mote, acabei não chegando a nenhuma conclusão, pois ia de uma conclusão a outra, sem concluir nada e percebendo, por isso, que meu amigo, lamentavelmente por mim esquecido, tinha-me colocado contra a parede com uma questão vital, "esfíngica", transcedental: "Decífra-me ou te devoro". Da mesma forma, o famoso Shakespeare deve ter sentido este dilema, transferindo-o para seu Hamlet, quando em frente ao crânio pergunta: "Ser ou não ser, eis a questão".

O caso é que também transfiro a pergunta: Os políticos são todos iguais? Se não são, porque tantas semelhanças, atravessando épocas, idades e eras?

João Ubaldo Ribeiro, num elogio à política, lindo e bem escrito, diz que nascemos e morremos fazendo política,  que existem bons e maus políticos e que, para acabar com o jargão de que político não presta, os homens de bem deveriam entrar para a política, para moralizá-la de vez. Infelizmente, não concordo com João, o que não tira o mérito de sua excelente prosa. É que já vi homens de bem entrarem na política cheios de esperança e em lugar de transformá-la de ente impessoal, tendendo à moralidade (como se um ente impessoal pudesse ser moral ou imoral), transformaram-se eles próprios em imorais defensores da moralidade, mas ... cheios de dinheiro. Por isso chega-se à conclusão que a política nada tem a ver com ética ou moralidade. Os políticos, sim! A política, levada a cabo por políticos de pouca moralidade, corrompe até os mais austeros cidadãos, com seu poder de sedução e ganho fácil. É o que se vê por aí.

Se o "Aurélio" diz que "política é a arte da boa vizinhança", os políticos procuram levar isto ao pé da letra e, por este relevante motivo, moram em mansões bem localizadas, nos bairros mais caros, nos condomínios mais sofisticados, nos prédios mais luxuosos, onde a vizinhança abastada é boa, muito boa.

O político deve ser honesto. Entre os muitos que conheci, o prefeito Narnulino Sócrates,  o seu Lili de Vila Sadia, dizia sempre:

-- Tenho horror a gente desonesta. Se o meu fornecedor de uísque, um dia, me vender uísque falsificado,  sou capaz de entregá-lo à polícia. Conto como é que ele contrabandeia o produto...  Pago bem, mas exijo honestidade

Aliás, seu Lili era um defensor do principio da honestidade:

-- O vereador Gerôncio não está sendo honesto comigo, dizia ao grupo correligionário. Quer cinquenta por cento daquele dinheiro do fundo da educação que eu desviei para comprar a lancha. O certo é ele levar vinte por cento, acima disso é desonestidade!... Não sei como esta gente pode ser tão desonesta!... Por causa de gente como ele é que político leva tanto a fama de ladrão!...

Padre Gotardo, vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Leva e Traz, em Vila Sadia, afirmava com seu sotaque forte de alemão:

― Poli, é prrrefixo grego que querrr dicerrr, muita. Tica é corrruptela da palavrrra titica. Porrrisso, política querrr dicerrr muita titica... Não é que o danado do padre tinha um pouco de razão?!...  Muita titica...  faz sentido!...

Apesar de tudo, não quero ser, indiscriminadamente, contra os políticos. Existem, ou melhor, existiram alguns honestos e bons. Infelizmente a história os crucificou, envenenou, queimou ou decapitou. Digo a história, pois o nome dos que cometeram atrocidades contra os mártires que não concordaram com determinadas atitudes retrógradas da humanidade, digna dos políticos atuais, este ficou esquecido, enquanto o de suas vítimas, como Giordano Bruno, Galileu, Jesus, Sócrates (não o Narnulino, mas o outro, o grego), Paulo de Tarso  e vários outros ficaram para a posteridade.

Segundo os "especialistas" o político não deve falar a verdade, mesmo que esta esteja aflorada, na cara, na bucha, como dizem por aí. O político que diz a verdade, perde a confiança de seus colegas. Mas é preciso que a mentira seja dita com a ênfase de uma verdade e que, se for preciso jure-se, por todos os santos, que suas afirmativas são totalmente verdadeiras. Aí, sim. Ele está tendo uma atitude política de primeiríssima qualidade.

 Certa feita, em um país de terceiro mundo cujo nome não recordo, houve uma fraude em um painel de votação, provada por perícia e pelo depoimento de coadjuvantes, com acareação e tudo mais que o caso requeria. Não é que os responsáveis, políticos de proa, mesmo sendo evidente a fraude, negaram jurando até a última instância, inocência completa e, ainda,  se revoltaram, bradando cobras e lagartos pela injustiça cometida? E quando, afinal, tiveram que deixar seus cargos, após exaustivo e pantomímico processo,  prometeram voltar nos braços do povo (???), que, certamente, devolveria seus mandatos pois eram políticos exemplares.

E voltaram!!! Estão cobertos de razão!

Outro jurava que um depósito de duzentos milhões de dólares (!!!) feito em seu nome e de sua família em um paraíso fiscal, era um golpe da oposição (!!!), que pretendia derrubá-lo nas pesquisas eleitorais para altíssimo cargo público.

Um terceiro, com ares de batráquio, depois de vender, pelo menos, um quinto de seu estado, negava, veementemente, a autoria de inúmeras fraudes, provadas e documentadas pela justiça. Clamava em alto e bom som, manipulação das provas, cuja maioria era seu próprio extrato bancário!!!...

Política é arte para rico besta e pobre sabido, pois geralmente o pobre sabido, em pouco tempo, vira rico sabido, enquanto o outro vai continuar rico besta e, se bobear, cai no "status" de pobre besta, pois gasta seu dinheiro e nunca chega a lugar nenhum. Só se faz política com dinheiro do povo, nunca com dinheiro próprio. Quem fez se arrependeu!

Herculino, vereador de Vila Sadia, sempre afirmava:

― Eu sou como o capim, sempre me dobro p'ro lado que o vento sopra. Quem faz oposição é quem não conseguiu arrancar nada da situação e, agora, quer a chave do cofre para tentar "comer" o seu. O meu, porém, é sagrado, e eu continuo do lado certo... Pior para os prejudicados. Para eles, pau...

A esses homens maravilhosos, estão entregues os destinos das cidades, estados, países... de toda a humanidade, enfim.

Para eles a posteridade reserva o nome das ruas, avenidas, praças, escolas, aeroportos, prédios públicos, palácios, etc, etc..

"Quosque tandem"?

 

Floco de Neve

 

Muitas vezes na vida engolimos elefantes, sapos, cobras e lagartos e nos engasgamos com um ínfimo mosquitinho.

Onércimo da Conceição tinha a cor do ébano... Forte como um touro... e grande! Uns dois metros de altura! Devido à sua cor, o pessoal do bairro o apelidou “Floco de Neve”, ou “Floquinho”; era um apelido carinhoso, afetuoso e meigo do qual ele se orgulhava e vangloriava, e vira e mexe referia-se a si mesmo como “Flocão” para compensar o diminutivo com que a rapaziada o designava.

Apesar da força descomunal, Floquinho era manso como um cordeiro... Não molestava a uma mosca sequer e os meninos faziam dele gato e sapato. Ele, em contrapartida, ria-se das peças que lhe pregavam com um bom-humor típico dos corações leves e despreocupados. Inocente e simplório, com um cérebro desproporcional ao corpo. Todavia era alegre e divertido, deixava-se guiar pelos outros exibindo constantemente o seu sorriso franco estampado na dentadura perfeita cujos dentes lembravam azulejos; Possuía pensamentos curtos e primários, mas seu coração era enorme e os bons sentimentos inatos.

Entretanto, o grande diferencial de Floquinho era o apetite! Chamava a atenção e muita gente vinha de longe só para vê-lo desmontar pratos e mais pratos numa demonstração impar de disposição estomacal. O bom homem dava show com direito a “repeteco” exibindo sua fome insaciável. Felizmente ele sempre encontrava alguém disposto a financiar seus repastos apenas para admirar como desapareciam, sucessivamente, as iguarias do cardápio. Uma por uma iam sumindo goela abaixo do gigante sem deixar rastro, acepipes, guloseimas, pitéus, quitutes ou manjares.

Normalmente ele não se utilizava de prato, é obvio! Uma latona, daquelas de dezoito litros, sim! E cheia até a boca! Qualquer gororoba que se colocasse ali dentro era consumida por aquela máquina voraz. No final ainda dava uma lambuja de duas dúzias de bananas...

Frangos assados desapareciam em três ou quatro bocadas... e nem cuspia os ossos! Mastigava e engolia tudo tal qual uma betoneira engole areia, brita e cimento para fazer concreto.

Certa feita os assistentes duvidaram que ele comesse um leitão inteiro, um capadete de, mais ou menos, vinte e cinco quilos. Comeu “de um tapa”! E ainda pediu uma bisnaga de pão para passar no molho de gordura que sobrou. No final, depois de roer os ossos perguntou se ainda tinha sobremesa...

O público inventava proezas para testar o apetite floquiano. Sugeriram que devorasse um garrote num programa ao vivo.

— Bicho vivo não como não senhor — respondeu.

Explicaram, depois de muito trabalho que o bicho não estava vivo... O programa era ao vivo, mas o garrote, assado.

Sem se convencer muito Floquinho concordou dizendo:

— Tá bom! Mas depois vocês pagam o tal de “rodízio” na churrascaria! Lógico que houve uma desistência geral. Já imaginaram o Floco em um rodízio?

O fato é que o apetite do Floco foi criando fama. Muita gente vinha de longe assisti-lo. E aí surgiu a ideia de realizar um concurso para ver quem comia mais. Os pratos seriam pesados antes e depois do embate e ganharia o que ingerisse a maior quantidade de comida, selecionada com antecedência por uma comissão.

O primeiro desafiante foi um paraibano baixinho, mas que, segundo os técnicos, comia feito um jegue. Coitado! Não deu para saída! Depois de alguns pratos o “bichim” desmaiou, vitima de uma possível SBB — Síndrome da Buchada de Bode. O Floco — é até engraçado — depois de dar conta de sua parte divertia-se em comer o que tinha sobrado do adversário.

E assim o nosso artista foi derrotando, um a um, todos os desafiantes nacionais: O mineiro chegou desconfiado, mas sucumbiu à galinha com quiabo e ao tutu com torresmo. O gaucho enganchou-se com um osso de costela assada e foi parar no PS. O carioca debateu-se vítima do angu à baiana e bife com fritas... Todos, numa sequência pré-estabelecida foram sendo derrotados pelo Floco de Neve. Paraenses não resistiram ao “pato no tucupi”, cearenses tropeçaram frente ao baião de dois, baianos fraquejaram entre moquecas, carurus e acarajés... Eram facilmente superados pelo imbatível Floquinho que, a cada dia excedia sua própria meta registrando recordes atrás de recordes.

E o mais interessante era que o nosso gigante de ébano nem se dava conta de tais proezas! Para ele o importante era comer, comer, comer... Se Dias Gomes, o genial escritor, tivesse conhecido o Floco, sua personagem Dona Redonda estaria prejudicada.

Já que não dava para os “nacionais” vieram os internacionais. Primeiro um russo muito renomado, com um cartel de invencibilidade bastante amplo. Floco o deixou afogado em estrogonofe. Chamaram um português famoso que ficou em coma entupido de bacalhau com batatas! Veio também um italiano que, segundo disseram, foi internado pondo macarrão pelo ouvido... E Floquinho os batia em seu próprio terreno, isto é, com seus próprios pratos típicos! O húngaro abandonou a disputa frente ao “goulash”, o francês abdicou no “fondu”, o mexicano desistiu das tortillas... Era uma vitória atrás da outra! Ninguém dava sequer para a saída

É óbvio que quem estava adorando tudo isso era o Floquinho; com a desculpa do treinamento ele passava os dias fazendo o que mais gostava!

Um dia veio a notícia de que o Floco havia sido desafiado por um alemão famoso. Mr. Hungrig era o que seu nome significava: um esfomeado. Além de comilão também era beberrão e consumia um barrilete de chope em cada refeição. Carrancudo e mal-humorado o tal Mr. Hungrig era também vaidoso e cheio empáfia. Logo que foi marcado o embate para dali a duas semanas, o alemão deu uma entrevista nos meios televisivos falando com seu forte sotaque:

— Eu vai acabarrr com a topete dessa suxeito — dizia referindo-se ao Floco de Neve. — Ele vai explodirrr como um grrrande bomba!

De fato o alemão parecia o negativo do Floquinho. Enquanto um era um guarda-roupa preto o outro era um guarda-roupa branco. O tamanho era semelhante e o apetite nem se fala.

A expectativa era enorme! O concurso seria transmitido pelos canais da TV aberta e fechada para vários países. As apostas corriam equilibradas:

— Rapaz, sei não... o tudesco é enorme... deve comer muito! — diziam uns. — Que nada! Floco acaba com ele no primeiro round, isto é, no primeiro prato! — afirmavam outros. O fato é que as opiniões se dividiam e isso criava grande expectativa. Todos aguardavam com ansiedade o dia do embate.

Logo apareceram os “técnicos” com táticas infalíveis para orientar Floquinho. Um deles sugeriu que o colocasse em um rigoroso regime; apenas, dez quilos de ração de cachorro por dia:

— Isso deixará nosso campeão com uma fome canina —, explicava.

Outros mostravam fotografias de apetitosos pratos fazendo que caíssem “rios” de água da boca de nosso campeão...  O fato é que submeteram o gigante a uma dieta forçada; e ele urrava com a parca alimentação. Nos últimos dias tiveram de acorrentá-lo, pois Floquinho estava irreconhecível com a abstinência alimentar.

O dia “D” aproximava-se e a expectativa aumentava!

Ah, mas estranhos são os desígnios da Providência! Quem poderá se gabar de conhecer o mundo, esta caixinha de surpresas que vive a nos pregar peças e mais peças... As Torres Gêmeas caíram, o Iraque foi invadido, a Espanha perdeu de três a zero, o “spider” Anderson desmoronou, o povo foi para as ruas reivindicando decência na “coisa pública”... Ninguém pode se gabar de conhecer o destino!

Os insondáveis meandros do futuro pespegam-nos peças que, muitas vezes nos pegam de surpresa. O porvir arma-nos verdadeiras armadilhas, surpreendentes obstáculos que nos espreitam nas curvas do caminho.

O fato, a verdade nua e crua é que a disputa entre Floquinho e Mr. Hungrig jamais ocorreu! Mas como? Porque? Qual o motivo para tal?

A notícia explodiu como uma bomba: Floco de Neve morreu!

— Para aí! Morreu? Não acredito! Aquele gigante que esbanjava saúde e bom humor? Morreu como?

— Engasgado com um caroço de azeitona de uma empadinha que qualquer menino come de uma bocada!

— Um caroço de azeitona? Um simples carocinho venceu o homem que comia uma tonelada?

Alguém que ouvia disse baixinho:

— Essa história já foi contada! Aconteceu com David e Golias! O caroço foi a pedrinha... Eu juro que está na Biblia!

 

Fernando Gimeno

(Fergi Cavalca)