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NOVOS CONTOS


O EMPRESTIMO

 

O presente conto recebeu Menção Honrosa da Academia de Letras e Artes Buziana, de Armação de Búzios RJ.

 

    

O Empréstimo

 

O doutor Cândido ajeitou os óculos e recomendou a Inocêncio:

— Veja bem, chegando à Bahia você vende a mercadoria na feira; depois vá à igreja do Senhor do Bonfim e deposite este pacote lá onde se fazem as doações, como você sempre procede...

E apresentou um pacote grande, de papel pardo grosso, muito bem amarrado; o papel era desses usados para embalar volumes.

Inocêncio era o capataz da fazenda do doutor Cândido, rico e próspero produtor de laranja, coco, farinha, tapioca, goma, beiju, castanha e não sei quantas coisas mais que se plantam ou manufaturam na roça. A fazenda ficava em Sergipe, quase na fronteira da Bahia e a produção era vendida para atacadistas de Salvador, principalmente na feira de “Água de Meninos”. A cada semana ele lotava o caminhãozinho e rumava para a “Boa Terra” vendendo a mercadoria e prestando contas ao proprietário da gleba.

Inocêncio já exercia tal cargo por mais de vinte anos e era da inteira confiança do doutor Cândido. Por isso a cada viagem o patrão, um devoto muito piedoso, entregava-lhe um envelope, certamente uma oferta financeira ao Senhor do Bonfim, para ser depositada ao pé do santo.

Inocêncio, além de nunca negligenciar seus deveres profissionais, jamais esboçou a curiosidade de conferir o que ia dentro do envelope. Simplesmente responsabilizava-se pela encomenda e cumpria as ordens integralmente, sem questionar qualquer item.  Esse era o principal motivo pelo qual o doutor o considerava um funcionário exemplar.

Carregado o caminhão e inteirado de todas as recomendações de praxe, partiu ele de madrugada para cumprir sua tarefa. Deixou a fazenda às duas da manhã e esperava chegar ao destino às cinco.

Tantas vezes havia realizado esse trabalho que a viagem já se tornara rotina. Chegou, portanto a Salvador no horário aprazado e iniciou o roteiro para entregar a mercadoria a seus principais fregueses, recolher o pagamento e, depois, ir à igreja tratar do outro assunto do qual fora encarregado: a oferenda ao Senhor do Bonfim.

A manhã já ia alta quando Inocêncio subiu as escadas que levavam ao átrio do famoso santuário. Por ser dia de semana não havia muita gente: alguns turistas munidos de máquina fotográfica retratavam o egrégio templo, comentando estridulamente as características do local, principalmente os milagres atribuídos ao célebre padroeiro, afamadíssimo em todo o Brasil pelos maravilhosos prodígios ali perpetrados.

Inocêncio entrou na nave e sentou-se em um dos bancos vazios para descansar do calor insuportável do verão baiano. Enxugou o suor abundante com um lenço e ficou aproveitando a corrente de ar que circulava na nave principal da igreja.

O pacote da encomenda repousava em seu colo! Era bem mais pesado do que os envelopes que ele transportava com frequência!

Inocêncio que, apesar de alguns esboços culturais era homem simples da roça e, da mesmíssima forma que qualquer outro representante do gênero humano, não pode reprimir uma pontinha de curiosidade a respeito do “recheio” do embrulho. Não que ele fosse desonesto, longe disso! Era apenas “normal” o nosso pobre homem.

Ficou olhando, olhando... e, cada vez mais forte, ia batendo uma vontade mórbida, um anseio enorme de bisbilhotar o conteúdo do pacotão. A mão chegava a “doer” com o desejo de espreitar o que estava ali dentro tão bem embalado e amarrado. Mas a consciência... Essa barrava a terrível onda das irreprimíveis aspirações que brotavam em seu íntimo.

Negaceia de cá, apalpa de lá... olha em volta...  verifica que a igreja está meio vazia... que ninguém prestará atenção nele... Devagarzinho suspende uma ponta do papel e dá uma espiadela...

Inocêncio prendeu a respiração, conferiu uma vez, duas vezes, três vezes...  Olhou bem de novo, certificou-se ainda mais uma vez... não havia qualquer dúvida: um maço de notas de cem reais apareceu pela fresta do buraquinho que fizera. Rapidamente contou cinquenta notas!... Apalpando o embrulho constatou que havia uns dez pacotes semelhantes; se todos tivessem o mesmo valor haveria ali, pelo menos, cinquenta mil reais.

Inocêncio pensou:

— O doutor é maluco... Dar essa quantia ao santo!... O padre é quem vai ficar contente... dar pulos de alegria...

Mas ele também era muito devoto do Senhor do Bonfim... e honestíssimo, diga-se de passagem. Olhava o dinheiro, olhava a imagem, olhava novamente o dinheiro... e pensava:

— Não posso ficar com essa quantia! Não seria justo... Mas também não é justo que essa dinheirama toda vá para uma igreja rica como esta. O que devo fazer? Não posso tirar o dinheiro do santo e nem deixá-lo ao Deus dará... Valei-me Nosso Senhor do Bonfim. Mande uma inspiraçãozinha...

As horas iam passando e Inocêncio continuava sentado, estatelado, sem saber o que fazer... A manhã entrou pela tarde e o capataz continuava ali, rezando para que o santo milagroso lhe desse uma pista do que fazer. E quanto mais pensava, menos tinha ideia sobre como procederia. Algumas vezes esboçou levantar-se para entregar a oferta, mas as pernas bambas o prendiam e não o deixavam realizar o intento. Pensou, pensou, pensou... Em alguns momentos as lágrimas escorriam pelo seu rosto, tal a angústia que sentia com tão inusitada situação.

A tarde já ia alta quando Inocêncio tomou uma decisão: retirou uma folha de seu caderno de anotações e escreveu:

“Meu Senhor do Bonfim: Estou muito necessitado de uma certa quantia que meu santinho querido sabe, perfeitamente, quanto é. No momento o Senhor não está precisando dela tanto quanto eu, portanto solicito, por empréstimo, o montante acertado aqui, dentro de sua igreja, o qual pagarei, tão logo possa, em prestações iguais, à partir do prazo que vou estipular em minhas orações diárias”.

Colocou o bilhete sem assinar em um envelope e depositou como sempre fazia, no local das oferendas. Depois saiu com o coração leve, mas o pacote, que era pesado, também ia bem apertado contra o peito!...

Hoje Inocêncio, rico e próspero comerciante do ramo atacadista em Salvador, deve a sua fortuna ao empréstimo contraído com o santo, o qual, diga-se de passagem, foi pago conforme o combinado em prestações iguais, sem atrasos e com os juros de praxe.

Aos domingos Inocêncio não perde uma missa sequer na “Colina Sagrada” e, no silêncio de um “tête-à-tête” com a imagem que o olha complacente do alto da cruz com seus olhos lacrimosos e sanguinolentos, ele murmura baixinho:

— Obrigado meu santinho, mas que esse segredo fique apenas entre nós dois para sempre.

 

Fergi Cavalca

 

 Uma visita inesperada


 

O local chamava-se “O Coruja”. Fora batizado assim devido ao grande número daquela ave que à noite piava de forma agourenta e lúgubre nas árvores centenárias da chácara, um casarão colonial com sobrado e, mais ou menos, mil metros quadrados de área em terreno bastante arborizado. Como todo bom solar antigo, tinha a fama de mal-assombrado.

Quando aconteceu o fato narrado, a casa servia como república para estudantes universitários que cursavam algumas das faculdades existentes na cidade; abrigava, na época, dez alunos distribuídos em quatro quartos: um grande e dois pequenos no andar superior e um grande no andar de baixo.  Jaime, Patrick e Pedro, alunos do sexto semestre moravam no maior em cima. Renato Roberval, Severino e Cocada, alunos do terceiro e quarto semestre ocupavam os dois outros quartos do segundo andar e Jorge, Cyro e Henrique, novatos concluindo o primeiro semestre, o quarto do térreo.

Já há algum tempo os trotes pesados estavam abolidos... Mas os alunos veteranos não dispensavam algumas brincadeiras tidas como “inocentes” com objetivo de construir um congraçamento maior entre todos. Era o dia vinte de junho, quinta-feira, véspera do solstício de inverno, noite fria e considerada a mais longa do ano. Na semana seguinte entrariam em recesso até o final de julho.

Estavam todos reunidos no quarto do Jaime. Patrick que era corpulento, embora sua voz fosse absurdamente fina, falou, franzindo o cenho e fazendo uma careta, com seu timbre de falsete:

— Gente, já ia me esquecendo: amanhã, sexta feira, é o dia vinte e um de junho!

Jaime, que era o mais velho e líder já que também se constituia no morador mais antigo do Coruja, arregalou os olhos e deu um tapa na perna:

— Deus como poderia passar em branco essa data? — disse. — Já nem me lembrava! É o dia da baronesa!...

Cyro deu uma risada sem graça típica dos que estão ‘voando’ no assunto, mas que não querem dar o braço a torcer. Perguntou assim “inocentemente” como se tratasse de algo sem importância:

— É mesmo? E o que vem a ser isso?

Pedro fez cara de desaprovação, balançou a cabeça e comentou:

— Você não deveria ter tocado nesse assunto Patrick! Agora o Jorge, o Cyro e o Henrique vão querer saber do que se trata... Deveria ter esperado para falar depois da data... Na volta das férias de julho!

Os três novatos entreolharam-se. Jorge passou a língua disfarçadamente pelos lábios; não queria demonstrar curiosidade, mas estava intrigado. Finalmente indagou:

— O que significa essa data? Algum fato especial?

Renato, outro veterano, procurou desconversar:

— Ora não é nada! Bobagem do Patrick... Apenas superstições...

Jaime interferiu:

— Renato, agora que foi tocado o assunto é melhor contar logo. Eles ficarão sabendo de qualquer forma... É até pecado deixá-los assim, na ignorância de um fato tão estranho. Afinal de contas eles moram aqui!

Roberval, Severino e Cocada, os outros três alunos antigos concordaram:

— É isso mesmo — confirmou o Severino. — Ajoelhou tem que rezar! E agora Patrick: ou você conta ou nós contamos?

Patrick deu um suspiro e disse com a vozinha fina:

— Está bem, vou contar. Mas depois não reclamem... O fato é que aconteceu uma tragédia no casarão, justamente no dia vinte e um de junho...

— E daí? — perguntaram em coro os três novatos.

O Jaime pegou a deixa e prosseguiu com a fisionomia séria:

— Deixa que eu conte Patrick... Você parece uma saracura falando! A casa pertencia a um barão, figura importante do segundo império. A baronesa era muito bonita, mas não era fiel. Na noite de vinte para vinte e um de junho — justamente essa em que estamos hoje — o barão saiu para cumprir um compromisso social. Era meia-noite quando ele regressou; mais cedo do que o previsto... Quando subiu para o segundo andar escutou vozes que vinham da alcova do casal...

Jaime parou um pouco para tomar fôlego. Henrique, impaciente pediu:

— E daí? Conte logo que eu estou curioso.

— Daí — continuou Jaime — que o barão foi pé-ante-pé e espiou para dentro do quarto e viu...

— O que? — perguntaram os três novatos.

— O que seria lógico — explicou Jaime. — A baronesa estava de amores com um jovem pajem na própria cama...

Silêncio de suspense... Depois de quase um minuto Cyro perguntou:

— Desembucha logo, pombas! O que aconteceu depois?

Jaime saboreou o desfecho! A seguir concluiu com voz muito circunspecta:

— Ai o barão ficou louco! E sacando da espada decepou a cabeça da baronesa de um só golpe... e também transpassou o coração do jovem. Em seguida deu cabo de sua própria vida... Uma tragédia!

Severino concluiu:

— O grande problema é que, segundo a tradição, na noite de vinte para vinte e um de junho, à meia-noite. O fantasma da baronesa, decepado, vestido de branco e levando a própria cabeça debaixo do braço desce as escadas em busca do amor de seu amante...

— Ora, isso é conversa fiada — desabafou Henrique. Eu não acredito em fantasmas...

— Nem eu — cochichou Renato. — Mas no ano passado eu vi o tal fantasma!

Jaime ponderou:

— Está bem, existindo ou não existindo fantasmas é melhor a gente dormir porque já é tarde e, caso a baronesa apareça, se estivermos dormindo não veremos, não é mesmo? Portanto rua todo mundo... Chispa que já é hora cambada.

Todos se retiraram cada qual para seu quarto.

Cyro, Henrique e Jorge não dormiram de imediato. Ficaram durante algum tempo discutindo a possibilidade de ser verdade o relato e estavam se divertindo com a história da baronesa. Nesse instante ressoou na casa, vindo não se sabe donde, doze badaladas... Silêncio... De repente um barulho como um fraco gemido pungente. O ruído repetiu-se mais alto e foi continuando. Era algo abafado, horripilante... Os jovens entreolharam-se! Ninguém ousava emitir uma opinião. Novamente o gemido surdo terminando num lamento dramático.

Cyro, mais cético e corajoso que os colegas, resolveu investigar: entreabriu a porta do quarto e olhou para o topo da escada; uma luz de vela tremeluzente e pálida iluminava frouxamente o trecho que trazia ao térreo. No topo foi surgindo do nada uma figura toda vestida de branco! As vestes possuíam manchas vermelhas como se fossem de sangue salpicando o espaço donde saiam os ombros e, dali, pendia um dos braços, inerte, rente ao corpo... o pescoço estava perfeitamente decepado; o vulto trazia embaixo do outro braço algo redondo e também tinto de carmim, como se uma hemorragia tivesse ocorrido ali. Era uma imagem de gelar o sangue.

Quando os rapazes viram a aparição ficaram lívidos e trêmulos de terror. Não podiam subir para o quarto de cima, pois o ‘fantasma’ estava no meio da escada e soltava uivos e gemidos baixinhos, mas pavorosos, que assombravam até o mais descrente dos homens. Gritaram pelos companheiros do andar de cima, mas um silêncio total tomava conta do casarão. Não tiveram outro remédio senão correr para a rua que, naturalmente devido ao avançado da hora em uma cidade do interior, estava totalmente deserta.

No quarto de cima os outros que espiavam por uma fresta torciam-se em risos. Depois que os novatos fugiram o Severino, o paraibano baixinho que interpretara a baronesa entrou no quarto e tirou a fantasia, muito bem arranjada por sinal, perfeita com os braços postiços saindo do pescoço cortado onde existia um enchimento para dar ideia de ombros e uma bola de futebol meio murcha dentro de uma fronha imitando a cabeça decepada.

Todos rolavam de tanto rir. Por isso inicialmente o barulho macio de unhas compridas arranhando a porta do quarto devagar passou despercebido...

Entretanto logo se ouviu um gemido pavoroso, lancinante... Uma gargalhada tétrica ecoou no recinto enquanto uma voz metálica, trêmula, triste e inumana sussurrava da porta:

— Alguém me chamou?... Estou aqui!... 

Fergi Cavalca